INSPIRADOS NO “OURO VERDE”

O sucesso dos carros do “Ouro Verde” motivou a aquisição de novas unidades em aço, seja pela técnica construtiva, sua facilidade e o baixo custo de manutenção, assim como pela necessidade de criação de novos trens noturnos, bastante procurados pelo público. Contudo, optou a Sorocabana por construí-los ao invés de comprá-los no estrangeiro, aproveitando a capacidade fabril das oficinas de Sorocaba, partindo de um programa inicialmente dedicado à construção de vagões de carga tipo VGS.

Entre os motivos desta decisão destacam-se:
• Menor custo de aquisição – 280 contos de Réis frente a 510 se adquirido fora do país;
• Aproveitamento integral das estruturas e mão-de-obra das oficinas;
• Impossibilidade de aquisição na Alemanha que, já estava em guerra na Europa;
• Restrição norte-americana às exportações devido ao conflito europeu.

Determinada a fabricação de uma composição, chamada de “Bandeirante” em alusão aos desbravadores do interior paulista, foi iniciada em 1940 a construção de um protótipo de Primeira Classe, concluído no início de 1941, identificado pela série numérica “300”. Nesta empreitada foi adotada, à risca, a mesma técnica construtiva dos carros do “Ouro Verde”, com pequenas adaptações no acabamento interno e na parte inferior da caixa metálica e 50cm mais compridos, conforme projeto desenvolvido pelo Eng. H. Nobre Mendes.

Aspecto do primeiro carro do “Bandeirante”, curiosamente pintado de branco. Destaque para a “saia” fechando o estrado.  (Relatório da E. F. Sorocabana, 1940)

Reportagem sobre a demonstração do protótipo na estação Júlio Prestes.  (Acervo OESP, 29/04/1941)

Apesar dos inconvenientes causados pela II Guerra, entre eles a necessidade de mais atenção à construção de vagões, em meados de 1945 oito carros estavam prontos.

Naquele ano um novo projeto foi posto em produção. A terceira geração de carros em aço carbono foi igualmente baseada nos carros do “Ouro Verde” e nas evoluções alcançadas com o projeto “Bandeirante”. Entretanto, foram concebidos com comprimento reduzido e acabamento interno e disposição das janelas diferente.

Trem “Bandeirante” na gare da estação Júlio Prestes em meados dos anos de 1940. (reprodução: Sergio Martire)

Foi prevista a construção de duas composições de 12 carros, identificados pela série numérica “400”, que deveriam receber os nomes “Anhanguera” e “Raposo Tavares”, nomenclatura jamais adotada. Em fins de 1945 já estavam em serviço 17 unidades.

Nos anos seguintes deu-se continuidade a ambos os projetos, com a construção de outras duas unidades do “Bandeirante” até 1947 e mais 17 unidades do “série 400” até 1951, permitindo a formação de uma terceira composição.

Comparativo entre as três gerações: Ouro Verde, Bandeirante e Série 400

1 – Carro série 400 em construção

2 – Truque tipo Görlitz construído em Sorocaba

Interior dos carros série 400:
3 – Segunda Classe

Interior dos carros série 400:
4 – Primeira Classe

Interior dos carros série 400:
5 – Correio-Bagagem

Interior dos carros série 400:
6 – Restaurante

7 – Dormitório

Fotos: Revista Nossa Estrada 05/1946

O único carro Dormitório-Salão construído para o trem “Bandeirante” ganhou uma cabeceira envolvente, característica típica de um carro cauda. (col. Thomas Corrêa)

Um carro Restaurante da série 400 no pátio de Ourinhos em fins dos anos de 1960. (foto: Guido Mota, Acervo Memória do Trem)

Curiosamente, entre 1952 e 1953, o projeto “Bandeirante” foi retomado para a construção de três veículos administrativos, destinados ao transporte de autoridades da estrada, políticos e personalidades que percorriam as estações da Sorocabana em visitas oficiais.

Os carros Administração A 301 e 302 também foram concebidos para viajar na ponta do trem. Na imagem o segundo, já com o padrão de pintura e a numeração da Fepasa, em viagem oficial. (APESP)

A inspiração no “Ouro Verde” para a fabricação de carros de passageiros extrapolou os limites da Sorocabana. A própria ferrovia chegou a construir carros com as mesmas técnicas fabris para um trecho além de sua linha tronco e principais ramais.

Chegada de um trem de bitola de 60cm na estação Areal em 1957.  (foto: John R. Williams, col. Thomas Corrêa)

Trata-se do Tramway Cantareira, cuja administração foi atribuída à Sorocabana em 1942, que recebeu a missão de modernizá-lo. Na época, a pequena ferrovia de intenso tráfego suburbano, que ligava a região central da capital paulista à Serra da Cantareira e ao município de Guarulhos, era dotada de bitola de 60cm, tração a vapor e pequenos carros de passageiros, todos construídos em madeira.

Para atender a demanda e melhorar o serviço prestado era preciso alargar a bitola, substituir a tração a vapor e dotá-la de carros maiores, preferencialmente construídos em aço. Em 1947 foi inaugurado o primeiro trecho em bitola de 1,00m, entre a estação Tamanduateí e Guarulhos, para o qual foram deslocadas três locomotivas a vapor e 12 carros de madeira, construídos três de aço baseados no projeto dos série “400” e transformados dois de madeira em aço, com portas centrais, cujas caixas também foram construídas conforme a tecnologia empregada no “Ouro Verde”. Para estes foi criada a sigla “CT” de Cantareira.

Dois trens de passageiros no início do Ramal de Guarulhos com carros da série “CT 450” na cauda. Em ambas as imagens um carro de porta central em primeiro plano e um com portas nas cabeceiras em segundo. (foto: John R. Williams, 09/1957)

Em 1959 chegaram as primeiras locomotivas a diesel, todas da série “3100”, como esta, vista em manobra no pátio das oficinas da João Teodoro. Destaque para a inscrição “EFS” em alto relevo na lateral do carro da série “CT 450”. (foto: Carlheinz Hahmann, s/d)

Estiveram em serviço na Seção Cantareira até 1965, ano em que o último trecho ainda em operação foi desativado. No ano seguinte passaram a integrar a série “700”, sendo eliminado o “T” da sigla, e foram transferidos para o serviço de subúrbio, entre São Paulo e Mairinque, trecho onde permaneceram até o final dos anos de 1970, quando foram retirados de serviço pela Fepasa.

Comparativo entre as três versões da série “CT”, com a configuração interna do início dos anos de 1970. Da esquerda para a direita: CT 351 e 352; CT 451 a 453; e CT 454 a 468. (col. Rafael Prudente Corrêa)

Na Fepasa, os carros da série “700” foram renumerados para 3271 a 3290 e mantidos no serviço de subúbio. Na imagem, um trem formado com os antigos “CT” atravessa o pátio da Barra Funda em direção à Lapa. (foto: Ivanir Barbosa, 11/1972)

Ao menos duas unidades foram transferidas para o serviço não remunerado. O carro C 718, depois 3288, renumerado como QC 4558, em 1983, e o carro C 720, depois 3290, renumerado como QC 4446, em 1982. Ambos ainda existem. O primeiro se encontra em Ourinhos, exposto ao lado da Biblioteca Tristão de Athayde, e o segundo jaz no pátio de Botucatu.

O carro QC 4558 fotografado em maio de 2020, à esquerda, e o carro QC 4446 em foto de setembro de 2017, à direita. (fotos: Eric Mantuan)

Além dos carros das séries “300”, “400” e “700” da Sorocabana, o “Ouro Verde” inspirou a fabricação de veículos para outras ferrovias brasileiras.

Foi o caso do trem “Presidente Vargas” o primeiro totalmente construído em aço pela indústria ferroviária brasileira, produzido pela Fábrica Nacional de Vagões – FNV em 1949. Esta composição, formada por “cópias” dos carros da série “400”, foi fornecida para a Estrada de Ferro Bragança, ferrovia de bitola de 1,00m que ligava Belém a Bragança, no estado do Pará, perfazendo 254 quilômetros.

Carros do trem “Presidente Vargas” na unidade fabril da FNV em Cruzeiro, 1949. (Arquivo FNV)

A automotriz A-3 com a nova caixa, cruzando com o bonde A-6 na parada São Cristóvão em abril de 1963. (foto: Raymond DeGroote)

Outro caso conhecido é o da Estrada de Ferro Campos do Jordão que, em 1941, solicitou à Sorocabana os projetos do “Ouro Verde” com intuito de adaptá-los para a construção de automotrizes. Em 1957 era entregue a primeira unidade, a automotriz A-3, cuja caixa original de madeira foi substituída por outra em aço revestida com chapas de alumínio, construída com a mesma técnica estrutural dos carros alemães.